segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A necessidade de estar na Luz


Há uma diferença entre gostar de ir ao Estádio da Luz e precisar de ir ao Estádio da Luz.
É algo que se desenvolve quando ainda somos muito novos e ingénuos. A minha mulher gosta de ir à Luz ver uns jogos de vez em quando, por exemplo. Eu preciso de lá estar sempre que há jogo oficial.
Foi por aqui que começaram os meus verdadeiros problemas familiares, escolares, sociais e, mais tarde, até amorosos. Um caminho feito até ao equilíbrio e à estabilidade emocional que tenho hoje porque fiquei com as pessoas que souberam compreender e viver com esta minha necessidade
Tudo começou comigo muito novo. Os meus pais vivem na rua em frente à lendária pastelaria Califa. Entre a casa onde vivi uns trinta anos e o Estádio da Luz só haviam uns prédios e umas terras a separarem-nos.
Muito cedo ouvi e vi como se sentia o Benfica porque o meu avô, pai da minha mãe, gostava de ir lá a casa ver os jogos da Luz na televisão. Eram momentos raros, só de vez em quando tínhamos a sorte de ver futebol na televisão. Logo nos primeiros encontros na sala lá de casa para ver a bola fiquei fascinado com a intensidade com que o meu avô vivia o jogo. Também o padrinho da minha irmã vivia alegremente o Benfica e só aparecia em jogos fora da Luz porque em casa ia ao estádio.
Numa dessas noites de ajuntamento ao jantar lá em casa, fui à janela, no 6º andar onde vivia,  e tive uma visão que mudou a minha vida. Fiquei fascinado ao olhar em direcção do estádio e vislumbrar um imponente clarão a interromper o escuro da noite. Eram as luzes daquelas maravilhosas torres de iluminação da Luz. Desenvolvi muitos pensamentos enquanto puxava pela imaginação e juntava o que via na televisão, ouvia na rádio e conclui que devia ir ser mais emocionante no estádio que estava ali tão perto.
Fiquei mais uns minutos já com o jogo a decorrer e acontece outro momento que ajuda a mudar a minha vida. Ouvi um bruá impressionante que até me assustou, corri para dentro e ainda vejo na televisão o Benfica a fazer um golo. O festejo da multidão chegou-me primeiro ao ouvido pela janela do que o golo aos meus olhos! Fiquei fascinado. Amigos e familiares riam-se mas nem se aperceberam que estava ali a nascer um benfiquista necessitado de Luz.
Com o futebol de rua, os jogos de Subbuteo e a aproximação ao meu avô, e ao padrinho da minha irmã, verdadeiras enciclopédias de Benfica e futebol, os sentimentos desenvolveram-se. Lembro-me que passei a ouvir os relatos da Luz de janela aberta na varanda para ouvir o bruá da multidão nos golos. 
Até que o grande dia acontece, o padrinho da mana lembra-se de me convidar para ir com ele à Luz. A. Foi a 29 de Agosto de 1979, na 1º jornada do campeonato, que o Benfica venceu por 5-1 o Vitória de Setúbal. Como Nené fez três golos fiquei com a ideia que tinha marcado todos porque a minha atenção dispersou-se muito além do relvado.
Fiquei maravilhado com tudo. Com as bancadas, com os apanha bolas vestidos de amarelo, com as bandeiras dos clubes num mastro atrás da baliza, com os comentários ao meu lado, com os festejos, com os gritos de incentivo, com o Terceiro Anel, com as torres de iluminação vistas de dentro, com o impecável relvado, com o Bento ali à minha frente, com os nogás e as queijadas de Sintra. Com o Benfica.
Saí dali apenas com uma certeza aos 5 anos de idade: nunca mais quero perder um jogo na Luz! 
Não foi uma tarefa fácil. Durante a infância dependia sempre do padrinho da minha irmã, agora também meu padrinho de Luz, para me levar. O maior drama foi na 1ª mão da Taça UEFA com o Bétis quando telefonou a dizer que não podia ir. Fui para a janela ver aquela rumaria incrível do povo benfiquista que desaguava na paragem de autocarros no fim da minha rua e depois ia a pé para a Luz. Chorei desesperado. Os meus pais assustaram-se com o choro e fui salvo pelo pai do padrinho que lá me levou para a Luz. Fomos até à final da competição.
Mais tarde comecei a ir sozinho ou com vizinhos. Chegava ao Estádio e pedia para entrar com um adulto. Fácil. Por isto é que só me fiz sócio em 1984 quando a minha elevada altura começou a não permitir uma entrada tão fácil.
As más notas na escola também começaram a atrapalhar os meus planos de fim de semana no Estádio. Os meus pais perceberam que o único castigo que me torturava era o impedimento de ir ver o Benfica. Fui sempre contornando mas não foi nada fácil.
Pior foi já em idade adulta quando começaram a aparecer os primeiros namoricos. Ao principio tudo muito engraçado, todas compreendiam a militância até ao dia em que vinha a pergunta fatal: mas olha lá, o jogo é com o Penafiel e tu tens de ir? Se fosse o Sporting ou Porto, ainda compreendia mas assim...
A resposta era sempre a mesma: é um jogo que vale 3 pontos como os outros. O que interessa vencer os rivais se não ganharmos aos outros?
Antecedia a frase já bem popularizada: a minha namorada desafiou-me - ou o Benfica ou eu. Às vezes tenho saudades dela. É um pouco isto.
 Depois veio a vida profissional e os problemas dos jogos em dias úteis. Sempre consegui dar a volta de maneira a estar na Luz a horas.
Fui explicando ao longo da vida que não valia a pena insistirem para ir a jantares, almoços, eventos familiares ou sociais se houvesse jogo na Luz. Ou ia antes do jogo ou aparecia depois do jogo. Durante a partida tinha que estar no estádio para o bem de todos.
Tenho uma paixão por música ao vivo e só troco um concerto que queira muito ir ver por um jogo do Benfica na Luz. Aconteceu na noite dos Nirvana em Cascais. Ganhámos ao Porto e nunca me arrependi de ter ido à Luz. 
O chamamento é muito mais do que um jogador, uma competição, um treinador ou um jogo. O chamamento são aqueles segundos absolutamente mágicos em que estou no meu lugar à hora em que os jogadores, sejam eles quais forem, começam a entrar no relvado com as cores do Benfica. É um momento zen. É um reset emocional. É o estado puro da alma benfiquista. Não interessa de onde viemos, para onde vamos. Não interessa como foi o último ano ou último jogo, não interessa quem partiu ou quem chegou. O que interessa é que estão ali onze homens com o emblema glorioso ao peito e eu estou ali com eles. Tal como em 1979 pela primeira vez. Tal como antes desse dia quando acompanhava os jogos pela rádio à janela. Tal como no antigo estádio quando me arrepiava ao ver a equipa subir as escadas e desatar a correr relvado fora até à vénia em frente ao Terceiro Anel. Tal como hoje quando se canta o hino e vê a águia Vitória.
Já tive que falhar alguns jogos oficiais na Luz desde a primeira vez que lá entrei. Sei todos de cabeça e os motivos de cada um. Razão mais do que suficiente para não querer falhar mais nenhum. Assim a vida o permita.


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