Chama-se ' Lá em casa mando eu '
E vale mesmo a pena lê-lo.
Autoria de Manuel Neves!
Enzo
Chegou como chegam todos os nossos
reforços: numa capa d`A Bola que promete um jogador de sonho, com um
elogio forçado e uma promessa irrealista. Já somos batidos nisto e,
reacção imediata, olhamos para o valor gasto e atribuímos imediatamente
uma responsabilidade. Foi nisto que o futebol moderno nos transformou:
antes sabíamos de cor datas, golos míticos, que jogador tinha jogado com
o número 8 em determinado jogo. Hoje sabemos salários, valores absurdos
de transferências e colocamos rótulos como se fossemos um
adepto-merceeiro.
Enzo, de olhar louco, rótulo de craque e
preço que exigia rendimento em campo, tornou-se um caso. Não aparecia,
não jogava e nós, adeptos que exigimos que aquele dinheiro todo se
materialize em golos, em assistências, em rendimento palpável,
mensurável, não lhe perdoámos: ficou o Enzo Férias. Um tipo tresloucado,
sem neurónios para isto, sem a concentração e a seriedade necessárias
para o exigente adepto europeu. Vais para a lista dos crápulas e de lá
não sairás, pensámos todos. Nem contava para o totobola. Hoje, quando
penso no Benfica 2011/2012, fico a pensar que estavam no plantel, no
princípio da temporada, Matic, Enzo Perez, Witsel e Javi Garcia. Matic
era um louro tosco que queríamos que não tivesse a bola nos pés e Enzo
era um gajo que estava exilado na Argentina e a quem só exigíamos que
nos desse o nosso dinheiro de volta (é tão, mas tão irónico que vejamos o
dinheiro dos nossos clubes como "nosso". Adiante.). Se a vida pudesse
andar para trás, podíamos ter tido um meio campo com Matic a 6 e Enzo e
Witsel à sua frente. Os merceeiros (com todo o respeito), suponho eu,
não passam a vida a melancolizar o azeite ou as maçãs que o seu
estabelecimento vendeu.
A vida dá muitas voltas e, ainda mal
restabelecido da saída de Javi e Witsel - foi a primeira vez na minha
vida onde eu não sabia, DE FACTO, como é que o Sport Lisboa e Benfica se
apresentaria em campo no resto da época - vi Enzo Perez à frente de
Matic no Celtic Park. Foi um 0-0 pálido e Enzo, sem aquele olhar
revoltado e louco que lhe conhecíamos dos blogs onde afogávamos as
mágoas por mais uma compra desgraçada (mas ninguém estuda o perfil
psicológico dos jogadores antes de os comprar? Porra, que amadores!),
parecia tímido em campo. Isto não vai dar, pensei eu, afogado no meu
sofá. O gajo não tem estofo para isto.
Alguns jogos depois, Enzo resolveu
arrancar no meio de dois trincos de uma equipa qualquer para chegar à
área. "Larga a bola, caralho!", "Larga, Enzo!", e ele sempre a acelerar,
com a cabeça demasiado em baixo para um médio centro, "Foda-se, dá a
bola!" e ele nada, "Levanta a cabeça, seu burro!" e ele em frente. A
jogada perdeu-se. "Este gajo é o extremo do meio", disse o P. Rimo-nos
muito na bancada. Mal nós sabíamos.
Com o passar da época, percebemos todos
que Enzo era essencial. A sua lesão, no fatídico jogo com o Estoril,
mudou o campeonato. Quando desatou a chorar em Amesterdão, já há muito
que Enzo Férias tinha sido enterrado. Enzo era já o nosso Enzo. O Enzo
do Benfica.
É óbvio que ser sul-americano ajuda. O
coração está ali mesmo, expresso na cara, nos olhos, nos palavrões.
Matic parecia decompor o campo em quadrados, mas Enzo vive a mil à hora,
com a faca nos dentes, como se jogasse com o barulho dos pneus dos
Fórmula 1 nos ouvidos. O olhar tímido e perdido de Celtic Park era já o
de um animal competitivo, a loucura do Enzo Férias transformou-se numa
rebeldia revolucionária usada em nosso prol. Enzo vermelho, Enzo
Ferrari.
Na terça-feira, Enzo comeu o Sporting,
comeu o derby. O extremo do meio acelerou sempre por onde quis, olhou
Adrien com os olhos loucos do Jack Nicholson no "Shining" e entrou para
os nossos corações benfiquistas. O golo é para emoldurar. A bola solta-se depois da perdida de Rodrigo e Enzo agarra-a em sprint, mete o corpo e parece que está
a disputar a bola contra um júnior. O Ferrari vermelho acelera e
encontra um menino inglês, louro, com ar de quem frequentou os melhores
colégios e vestido de farda verde-e-branca. Enzo, argentino "de la
calle", vermelho por adopção, pára. A cabeça demasiado em baixo (e isso
continua a irritar-me), mas arranca logo, um gesto imediatamente a
seguir ao outro, sem pensar. Senta o betinho e, em queda, faz um último
esforço outra vez para rematar, como quem já não tem mais forças para
dar.
Se há coisa que um jogador do Benfica
merece é que sejamos sempre gratos a quem dá tudo, a quem fica sem mais
forças para entregar à camisola vermelha. A imagem do Topo Sul todo de
braços esticados, a fazer vénias a Enzo ficará como uma das minhas mais
gratas recordações de um derby. Porque foi merecida.
Somos uns fáceis, nós adeptos. Só queremos
um tipo com quem nos identifiquemos, alguém que dê tudo. Queremos um
golo que nos apague a mágoa. Queremos, nem que seja por uns segundos,
sentir que aquele tipo vai ser nosso para sempre, que ele é do Benfica,
que ele também sabe a história do derby, que ele também vai entrar
amanhã no trabalho 3 cm acima do chão como que a voar porque ganhou aos
rivais. Nós não temos a frieza dos merceeiros, nós não queremos saber
quanto custaram e quanto ganham os craques, nós não queremos
departamentos de comunicação, empréstimos para rodar. Nós queremos
alguém que ganhe a bola em corrida e que a coloque docemente na rede,
como Enzo fez, e que depois desate a chorar de alegria como nós.
Eu sei que Enzo, eventualmente, vai sair.
Neste Verão ou noutro, não sei. Havemos de vê-lo com uma camisola
estrangeira qualquer, a arrancar pelo meio com a cabeça demasiado em
baixo e com aquele olhar louco. Enzo, outrora Férias, hoje Ferrari,
tornar-se-à Perez. E nós cá ficaremos, agarrados às promessas nos
jornais desportivos, a dizer que o Djuricic não rende, cínicos e
cansados de ser clientes. A paixão de Enzo será uma recordação.
Sonho com o dia em um tipo destes dirá não
e que escolha ficar connosco. É que, para mim, não há contas de
mercearia que valham um jogador a quem os adeptos perdoaram e com o qual
agora se identificam. Eu sei que as probabilidades disto acontecer são
praticamente nulas, mas no dia em que deixar de acreditar nisto é porque
já não sonho em fazer o que Enzo fez e em sair substituído com a Luz a
fazer-me vénias. Quando eu deixar
de acreditar nisto, deixei de ser adepto e tornei-me não o cliente de
uma mercearia, mas de um hipermercado qualquer. Enzo,
por viver o meu sonho, foi a pessoa que eu mais quis ser na vida nos
últimos tempos. E, por isso, e por muito que seja infantil (e é), espero
e sonho que fique. Um dia terá a braçadeira e sorriso rasgado e, para
sempre, todas as nossas vénias.
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