sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Com a devida vénia ao blogue ' Lá em casa mando eu '

Com a devida vénia ... transcrevemos um post de um blogue extraordinário:
Chama-se ' Lá em casa mando eu '
E vale mesmo a pena lê-lo.

Autoria de Manuel Neves!

Enzo

Chegou como chegam todos os nossos reforços: numa capa d`A Bola que promete um jogador de sonho, com um elogio forçado e uma promessa irrealista. Já somos batidos nisto e, reacção imediata, olhamos para o valor gasto e atribuímos imediatamente uma responsabilidade. Foi nisto que o futebol moderno nos transformou: antes sabíamos de cor datas, golos míticos, que jogador tinha jogado com o número 8 em determinado jogo. Hoje sabemos salários, valores absurdos de transferências e colocamos rótulos como se fossemos um adepto-merceeiro.

Enzo, de olhar louco, rótulo de craque e preço que exigia rendimento em campo, tornou-se um caso. Não aparecia, não jogava e nós, adeptos que exigimos que aquele dinheiro todo se materialize em golos, em assistências, em rendimento palpável, mensurável, não lhe perdoámos: ficou o Enzo Férias. Um tipo tresloucado, sem neurónios para isto, sem a concentração e a seriedade necessárias para o exigente adepto europeu. Vais para a lista dos crápulas e de lá não sairás, pensámos todos. Nem contava para o totobola. Hoje, quando penso no Benfica 2011/2012, fico a pensar que estavam no plantel, no princípio da temporada, Matic, Enzo Perez, Witsel e Javi Garcia. Matic era um louro tosco que queríamos que não tivesse a bola nos pés e Enzo era um gajo que estava exilado na Argentina e a quem só exigíamos que nos desse o nosso dinheiro de volta (é tão, mas tão irónico que vejamos o dinheiro dos nossos clubes como "nosso". Adiante.). Se a vida pudesse andar para trás, podíamos ter tido um meio campo com Matic a 6 e Enzo e Witsel à sua frente. Os merceeiros (com todo o respeito), suponho eu, não passam a vida a melancolizar o azeite ou as maçãs que o seu estabelecimento vendeu. 

A vida dá muitas voltas e, ainda mal restabelecido da saída de Javi e Witsel - foi a primeira vez na minha vida onde eu não sabia, DE FACTO, como é que o Sport Lisboa e Benfica se apresentaria em campo no resto da época - vi Enzo Perez à frente de Matic no Celtic Park. Foi um 0-0 pálido e Enzo, sem aquele olhar revoltado e louco que lhe conhecíamos dos blogs onde afogávamos as mágoas por mais uma compra desgraçada (mas ninguém estuda o perfil psicológico dos jogadores antes de os comprar? Porra, que amadores!), parecia tímido em campo. Isto não vai dar, pensei eu, afogado no meu sofá. O gajo não tem estofo para isto.

Alguns jogos depois, Enzo resolveu arrancar no meio de dois trincos de uma equipa qualquer para chegar à área. "Larga a bola, caralho!", "Larga, Enzo!", e ele sempre a acelerar, com a cabeça demasiado em baixo para um médio centro, "Foda-se, dá a bola!" e ele nada, "Levanta a cabeça, seu burro!" e ele em frente. A jogada perdeu-se. "Este gajo é o extremo do meio", disse o P. Rimo-nos muito na bancada. Mal nós sabíamos.

Com o passar da época, percebemos todos que Enzo era essencial. A sua lesão, no fatídico jogo com o Estoril, mudou o campeonato. Quando desatou a chorar em Amesterdão, já há muito que Enzo Férias tinha sido enterrado. Enzo era já o nosso Enzo. O Enzo do Benfica. 

É óbvio que ser sul-americano ajuda. O coração está ali mesmo, expresso na cara, nos olhos, nos palavrões. Matic parecia decompor o campo em quadrados, mas Enzo vive a mil à hora, com a faca nos dentes, como se jogasse com o barulho dos pneus dos Fórmula 1 nos ouvidos. O olhar tímido e perdido de Celtic Park era já o de um animal competitivo, a loucura do Enzo Férias transformou-se numa rebeldia revolucionária usada em nosso prol. Enzo vermelho, Enzo Ferrari.

Na terça-feira, Enzo comeu o Sporting, comeu o derby. O extremo do meio acelerou sempre por onde quis, olhou Adrien com os olhos loucos do Jack Nicholson no "Shining" e entrou para os nossos corações benfiquistas. O golo é para emoldurar. A bola solta-se depois da perdida de Rodrigo e Enzo agarra-a em sprint, mete o corpo e parece que está a disputar a bola contra um júnior. O Ferrari vermelho acelera e encontra um menino inglês, louro, com ar de quem frequentou os melhores colégios e vestido de farda verde-e-branca. Enzo, argentino "de la calle", vermelho por adopção, pára. A cabeça demasiado em baixo (e isso continua a irritar-me), mas arranca logo, um gesto imediatamente a seguir ao outro, sem pensar. Senta o betinho e, em queda, faz um último esforço outra vez para rematar, como quem já não tem mais forças para dar. 

Se há coisa que um jogador do Benfica merece é que sejamos sempre gratos a quem dá tudo, a quem fica sem mais forças para entregar à camisola vermelha. A imagem do Topo Sul todo de braços esticados, a fazer vénias a Enzo ficará como uma das minhas mais gratas recordações de um derby. Porque foi merecida. 


Somos uns fáceis, nós adeptos. Só queremos um tipo com quem nos identifiquemos, alguém que dê tudo. Queremos um golo que nos apague a mágoa. Queremos, nem que seja por uns segundos, sentir que aquele tipo vai ser nosso para sempre, que ele é do Benfica, que ele também sabe a história do derby, que ele também vai entrar amanhã no trabalho 3 cm acima do chão como que a voar porque ganhou aos rivais. Nós não temos a frieza dos merceeiros, nós não queremos saber quanto custaram e quanto ganham os craques, nós não queremos departamentos de comunicação, empréstimos para rodar. Nós queremos alguém que ganhe a bola em corrida e que a coloque docemente na rede, como Enzo fez, e que depois desate a chorar de alegria como nós.

Eu sei que Enzo, eventualmente, vai sair. Neste Verão ou noutro, não sei. Havemos de vê-lo com uma camisola estrangeira qualquer, a arrancar pelo meio com a cabeça demasiado em baixo e com aquele olhar louco. Enzo, outrora Férias, hoje Ferrari, tornar-se-à Perez. E nós cá ficaremos, agarrados às promessas nos jornais desportivos, a dizer que o Djuricic não rende, cínicos e cansados de ser clientes. A paixão de Enzo será uma recordação. 

Sonho com o dia em um tipo destes dirá não e que escolha ficar connosco. É que, para mim, não há contas de mercearia que valham um jogador a quem os adeptos perdoaram e com o qual agora se identificam. Eu sei que as probabilidades disto acontecer são praticamente nulas, mas no dia em que deixar de acreditar nisto é porque já não sonho em fazer o que Enzo fez e em sair substituído com a Luz a fazer-me vénias.  Quando eu deixar de acreditar nisto, deixei de ser adepto e tornei-me não o cliente de uma mercearia, mas de um hipermercado qualquer. Enzo, por viver o meu sonho, foi a pessoa que eu mais quis ser na vida nos últimos tempos. E, por isso, e por muito que seja infantil (e é), espero e sonho que fique. Um dia terá a braçadeira e sorriso rasgado e, para sempre, todas as nossas vénias.

Sem comentários:

Enviar um comentário